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quarta-feira, 9 de junho de 2010

Kite


Quando leio em alguns desses sites algum review tratando sobre um anime considerado mais adulto, sei exatamente o que encontrar como justificativa para tal classificação: a presença de violência e sexo. Nunca foge disso! É como se esses dois temas dominassem e fossem a razão de ser do mundo "maduro". É como se as crianças não coexistissem conosco na mesma sórdida e hipócrita sociedade.

Com efeito, o "mundo da imaginação", o camarote VIP supostamente exclusivo dos "pimpolhos", é também aquele em que se refugiam os que juram de pés juntos aos seus pequenos que repolhos parem e cegonhas trabalham full-time como assistentes sociais de orfanatos. O que diriam, então, os arautos assépticos da moralidade, de um deadly shoot em que os "assuntos proibidos" fossem dissolvidos em grotesca onipresença? "Não era coisa que eu esperasse ver em desenhos animados"? De fato, Pokemón foi uma febre para muitos... e crônica para alguns...

Kite, a propósito, a despeito de sua despretensão, é uma explosão, em sangue e porra, de assuntos varridos para debaixo do tapete. O curta-metragem é como um prelúdio tarantinesco, um tiro certeiro que não faz questão de causas e consequências para ser compreendido pelo "destinatário". Excitou?

Ilustrando, ou melhor, esboçando um pouco o assunto, digamos que uma dupla de justiceiros manipula dois jovens desorientados para matar a seu bel prazer os "criminosos repulsivos" -inclusive os "nem tão repulsivos assim": estes, por sua vez, assassinatos por encomenda. Contraditório? Pois isso, que já seria moralmente questionável e absurdo, é complementado por cenas inverossímeis de explosões e violência, adicionando ao tempero já forte de Kite ainda o ingrediente sensível da pedofilia.

Eu entendi perfeitamente a necessidade de esfregar tudo o que se passa em nossos rostos. Mas, francamente, acredito que a brutalidade "pornográfica" do anime não precisaria ir tão longe... Ou talvez sim, vai saber. De qualquer forma, apesar de não se tratar de uma obra dispensável, muito pelo contrário, recomendo aos amantes do MMA artístico qualquer filme do citado Quentin Tarantino, como alternativa. Tem mais classe.

Nota: 6,5

terça-feira, 8 de junho de 2010

Death Note



Um dos assuntos mais revisitados pela indústria cinematográfica e, em especial, pelos animes shounen é a eterna luta entre o bem e o mal. Algumas vezes, de uma maneira até mesmo francamente artificial, certos enredos polarizam vertiginosamente seus personagens, como se forçassem passagem as cenas de luta propriamente dita. Eu me lembro com carinho de um anime em questão, o famoso Cavaleiros do Zodíaco, mas não posso deixar de citá-lo como um exemplo daquilo que não deve ser feito: uma sucessão ininterrupta das mesmas histórias e a despersonalização das personagens em decorrência disso.

De certos equívocos, de certo, não sofre Death Note. Trata-se, sim, de uma luta entre o bem e o mal, mas tudo o mais que a envolve fica encoberto entre névoas -de tal forma que dificulta vislumbrar algo a mais do que um rebuço das reais causas do conflito. O protagonista e o antagonista deste anime em momento algum ficam bem delineados e, na verdade, são de tal forma parecidos que fica difícil perceber se cabe, de fato, uma definição maniqueísta de seus papéis na série. Com efeito, quem dentre os dois, Yagami Raito ou L, age mais por vaidade? Não se sabe. Raito demonstra por diversas vezes sua presunção absoluta, mas insinua um forte senso de justiça, uma vontade irrefreável de restauração da sociedade, para além das possibilidades de ser humilhado por seu opositor; já L, por outro lado, deixa claro que a posição de Kira é intolerável e leva sua perseguição às últimas consequências, inclusive pondo em risco sua própria vida, para alcançar alguém que sempre esteve a um passo a frente dele.

Essa ambiguidade, que acaba por dominar a série, sendo inclusive um dos pilares responsáveis por seu prestígio, seria uma excelente oportunidade para aprofundar o enredo em questões mais dinâmicas e problematizantes. Por exemplo, se Kira é desumano em seus atos, o que se poderia dizer de L, quando fez um criminoso se passar por ele mesmo, L, logo no terceiro capítulo, sabendo que, com isso, obrigaria Kira a matar seu falso perseguidor e a entregar ao verdadeiro L, assim, indícios de seu paradeiro? O roteirista procurou se justificar, colocando na boca de L a razão de ter escolhido uma cobaia humana para um experimento tão cruel: o criminoso em questão já estaria no corredor da morte. Mas isso não convence; pois L, embora em nome da justiça, já estaria se antecipando aos desígnios da própria, como um justiceiro, e se fazendo deus, inclusive ao tomar a vida de um homem em virtude da satisfação de um capricho (pois mesmo a captura de alguém perigoso não se equivale ao preço pago pela execução de outrem). Há muita subjetividade em jogo.

Logo, naquilo que poderia ser um grande diferencial da obra, Death Note soma a favor pouco mais do que a média de seu gênero. A maior sacada do criador de Death Note, mesmo por isso, é a de resvalar, quase sem querer eu diria, em inúmeras questões morais latentes enquanto se aprofunda no tratamento de um thriller bastante exótico para os padrões japoneses. O espectador fica tenso, hipnotizado. Não há, que eu me recorde, em toda história dos shonen, um anime sequer onde as personagens travassem combates a nível de inteligência tão-somente; Raito e L, no entanto, se regozijam nisso.

Inclusive pela capacidade de inovar, Death Note ganha destaque. Até meados da série, o enredo é robusto e as atitudes das personagens, bem como sua estrutura psíquica, vão num crescendo que, de repente, ao invés de fechar e de atar os nós da trama, prefere prosseguir por outro caminho e ainda por cima se estender nisso mais do que seria razoavelmente desejável, arrefecendo a carga dramática. Talvez por se ater demais ao "crime" da arrogância de Raito, o autor tenha errado a mão na conclusão, optando por lhe impôr um castigo até muito previsível e comum, imputado por um opositor muito menos intrigante e muito menos inteligente que Yagami Raito e seu "fiel da balança", o não menos fascinante L. Uma pena.

Nota: 8,5

segunda-feira, 7 de junho de 2010

Ergo Proxy


Escrever sobre essa obra-prima da animação japonesa é como pisar em ovos... ou em cacos. Para início de conversa, não espere por uma obra convencional. Ergo Proxy foge de tudo aquilo que já vi em termos de anime e mesmo de ficção científica; o básico a se dizer, nesse sentido, é que Ergo mistura os predicados de uma abordagem apocalíptica típica de algumas incursões pelo estilo, inclusive no que concerne ao aspecto religioso, com a visão cyberpunk de futuro ao melhor estilo japonês. E isso é apenas a ponta do iceberg...

O enredo fala basicamente sobre um imigrante frustrado que não consegue se adaptar e se destacar no meio onde vive -de certa forma um clichê japonês. Mas a sensação de que estamos lidando com uma obra incomum se revela até mesmo na contextualização desses pequenos estereótipos, na transmutação feliz do que poderia ser lido como um defeito do gênero; isso é traduzido até mesmo na forma como Vincent Law é desenhado nos primeiros capítulos e no modo como somos levados a crer, pelos mesmos, na sua insignificância, na sua "coadjuvância". Mas isso, que a princípio parece simples, na verdade se desdobra em interpretações diversas ao longo da trama e, não obstante, coerentes com o desenrolar dos acontecimentos.

É a hora exata para introduzir um dos elementos mais centrais na dificultosa exegese de uma obra tão complexa quanto Ergo Proxy: sua intertextualidade filosófica. Um dos autores citados na trama, que aparece apropriadamente como o nome de uma das "estátuas", é o de George Berkeley, filósofo irlandês do século XVIII que apregoava ser a existência definida somente pelo reconhecimento do que lhe é exterior. Apenas isso já diz muito sobre Vincent Law e a angústia que permeia toda a trama, não é verdade? Mas tem mais... porque me parece que, para os japoneses especificamente, a razão de ser reside exatamente no seu papel funcional dentro de uma sociedade: um indivíduo é visto como uma engrenagem apenas.

Ora, mas se fôssemos nos apegar a isso, ignoraríamos os outros tantos fascínios labirínticos de Ergo Proxy. Eu ainda não falei por exemplo sobre os autoreivs, pois não tive ocasião de me explicar e lhes aprofundar mais a esse respeito: autoreivs são os robôs da cidade de Romdo, criados para dar suporte aos humanos, mas que são "contaminados" por um estranho vírus, chamado Cogito, que supostamente os dota de sentimentos humanos. A caça a esses robôs (Vincent é um dos responsáveis pela sua eliminação) é uma dos argumentos iniciais do anime. A esse propósito, é irônico que também os cidadãos de Romdo sejam produzidos "em série" e, em comparação aos próprios autoreivs, aliás, sejam extremamente infiéis e ineficazes.

Outras questões são também aprofundadas. Quando Vincent foge do domo que envolve e aliena a si e a Romdo, redescobre a tristeza de si e do mundo devastado do qual sua antiga realidade se "protegia". Não demora muito para que empreenda uma verdadeira busca em direção à verdade, da qual Romdo, sob a égide de sua precária "perfeição", presume-se a guardiã e única detentora. No entanto, como o próprio Emissário da Luz o adverte, a jornada de Vincent poderá não redundar em felicidade, mas trazer-lhe uma luz que o nômade da escuridão pode não suportar. Dito e feito...

É bastante evidente, pelos simbolismos, que a "fuga" de Vincent representa muito mais do que a simples busca pelo desvelamento da verdade por detrás de meras intrigas políticas e/ou sociais, como a princípio nos parece. Com efeito, os alienados somos nós também, na medida em que somos paulatinamente introduzidos, como Vincent, na vertigem abstrata em que se vai enovelando o enredo, retrospectivo, sem perder o embolado "fio da meada". Alguns capítulos mais avançados são surreais de tão cerebrais e devastadores, seja nas peripécias, seja na própria estrutura narrativa.

Nossa, eu ainda teria muito a falar sobre Ergo Proxy... Mas minha impotência e a grandiosidade dessa obra não me permitem esgotá-la num único artigo de blog -quiçá nas páginas de um livro inteiro! Para espicaçar a curiosidade do leitor, vou lhe adiantando algumas pesquisas (e spoilers): a sombria, bela, objeto de desejo de Vincent e aparentemente insensível Re-1 Mayer (perceba o "nome de robô"...), depois de sua primeira "morte", se revela a nós, no monitor de Dédalus, como Real Mayer (algo como "real ilusão"). Para completar, vou lançar a faísca "essencial": o nome do anime e do vírus "cogito" remontam à celebre frase Cogito Ergo Sum (penso, logo, existo), de Descartes, só que substituindo "sou" por "proxy", ou "substituto", por causa da necessidade de toda e qualquer sociedade de dignificar a natureza humana emprestando-lhe algum sentido, ainda que divino.

Nota: 10